O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado no direito administrativo brasileiro*

- Bruno Fischgold em Direito Administrativo

No quadro de mudanças que a Constituição da República de 1988 impõe ao direito administrativo brasileiro, merece especial atenção o novo olhar de importantes autores sobre o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, ideia chave do regime administrativo durante muitos anos.

De acordo com autores tradicionais, como Celso Antônio Bandeira de Mello, Hely Lopes e Maria Sylvia Di Pietro, a supremacia do interesse público sobre o particular consubstancia um princípio do ordenamento jurídico brasileiro, ainda que não esteja expressamente contemplado em nenhum texto normativo. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, a prevalência dos interesses da coletividade sobre os interesses dos particulares é pressuposto lógico de qualquer ordem social estável e justifica a existência de diversas prerrogativas em favor da Administração Pública, tais como a presunção de legitimidade e a imperatividade dos atos administrativos, os prazos processuais e prescricionais diferenciados, o poder de autotutela, a natureza unilateral da atividade estatal, entre outras.[1]

Na mesma linha, Hely Lopes Meirelles defende a observância obrigatória do princípio da supremacia do interesse público na interpretação do direito administrativo. Sustenta que o princípio se manifesta especialmente na posição de superioridade do poder público nas relações jurídicas mantidas com os particulares, superioridade essa justificada pela prevalência dos interesses coletivos sobre os interesses individuais. Para ele, o interesse coletivo, quando conflitante com o interesse do indivíduo, deve prevalecer.[2]

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por sua vez, ressalta a importância de se observar tal princípio no momento tanto de elaboração da lei quanto de sua execução pela Administração Pública. Para Di Pietro, todas as normas de direito público têm a função específica de resguardar interesses públicos, mesmo que reflexamente protejam direitos individuais.3] Firme na premissa de que a Constituição da República de 1988 está em sintonia com as conquistas do Estado Social, Di Pietro entende que a defesa do interesse público corresponde ao próprio fim estatal. Por tal razão, o ordenamento constitucional contemplaria inúmeras hipóteses em que os direitos individuais cedem diante do interesse público.[4]

A influência desses três autores é tão marcante na doutrina brasileira que grande parte dos textos que abordam os princípios do direito administrativo afirmam a existência do princípio da supremacia do interesse público, ainda que, na maioria dos trabalhos, o princípio em si seja analisado de modo superficial.

Esse entendimento já não pode mais ser considerado pacífico, porquanto estudiosos de relevância no Direito Público vêm questionando a compatibilidade do princípio da supremacia com a Constituição da República de 1988, de modo a suscitar um importante debate na doutrina administrativista.

Marçal Justen Filho, por exemplo, questiona a “teoria da supremacia e indisponibilidade do interesse público” e suas críticas dirigem-se principalmente à fluidez conceitual do termo interesse público, cuja utilização no direito administrativo geralmente legitima “arbitrariedades ofensivas à democracia e aos valores fundamentais“.[5] Trata-se, na opinião do autor, de mais uma fórmula imprecisa (assim como poder de polícia ou poder de império) a dificultar o controle dos atos praticados pelo poder público.

Justen Filho destaca a importância de não se confundir interesse público com interesse do Estado, com interesse do aparato administrativo e muito menos com interesse dos agentes públicos.[6] Enfatiza também a impossibilidade de se identificar interesse público com interesse da maioria, dado o caráter contramajoritário das democracias constitucionais, que visa justamente a proteger os direitos das minorias. Diz, na verdade, ser impossível precisar um conteúdo próprio para a expressão interesse público, até porque, em sociedades fragmentadas e plurais como as contemporâneas, não há um único interesse público mas diversos e, muitas vezes, antagônicos interesses públicos.[7]

Desse modo, o interesse público não poder servir de baliza para o direito administrativo, como defende a doutrina majoritária. Se não é possível definir com precisão o que vem a ser o interesse público, como admitir que este prevaleça sobre os interesses dos particulares? Dada a pluralidade de interesses públicos e privados igualmente tutelados pelo ordenamento constitucional brasileiro, Justen Filho sublinha que a atividade administrativa deve ser orientada não pelo princípio da supremacia, mas sim pela máxima realização de todo o conjunto de direitos fundamentais, sejam estes de titularidade individual, coletiva ou difusa.[8]

Recentemente, Gustavo Binenbojm analisou o tema com propriedade e sistematizou os questionamentos feitos até então.[9] Concluiu pela incompatibilidade do princípio da supremacia do interesse público com o ordenamento constitucional brasileiro, com base, principalmente, nos seguintes fundamentos: 1) o referido princípio desconsidera a relevância atribuída pela Constituição a todo o conjunto de direitos fundamentais; 2) trata-se de um princípio que não tem estrutura normativa de princípio, pois não admite ponderações com outros valores constitucionais; 3) a fluidez conceitual do termo interesse público dá margem a inúmeras arbitrariedades estatais; 4) interesses públicos e interesses privados não são antagônicos, mas pressupõem-se mutuamente.

Gustavo Binenbojm, outrossim, acrescenta observações importantes a respeito das incoerências encontradas na doutrina que preconiza a supremacia do interesse público sobre o privado, além de adotar uma concepção diferenciada de interesse público, que rejeita a prevalência apriorística de qualquer categoria de interesses sobre a outra. Para ele, a doutrina dominante no direito administrativo brasileiro tem dificuldades teóricas para defender com coerência o princípio da supremacia.

Binenbojm chama a atenção, por exemplo, para o equívoco, comumente cometido, em se lançar mão do princípio da supremacia para afirmar a ilicitude do uso da máquina administrativa para fins pessoais ou políticos. Invoca-se, nesse caso, a supremacia do interesse público com o propósito de invalidar determinadas condutas que, na realidade, são obstadas pelos princípios da impessoalidade e da moralidade.[10] Destaca também a incoerência daqueles autores que, ao mesmo tempo em que afirmam a prevalência dos interesses da comunidade sobre os direitos individuais, atribuem ao intérprete das leis a competência para equilibrar privilégios estatais e direitos individuais. Ora, se o interesse tutelado pelo Estado deve sempre prevalecer, qual seria o equilíbrio a ser buscado pelo aplicador das normas?

Para Binenbojm, a contradição do raciocínio é inegável e resulta justamente da difícil adequação do princípio em foco a um ordenamento jurídico que tutela, em igual medida, tanto os direitos individuais quanto os interesses da coletividade.

De acordo com esse autor, o constitucionalismo moderno não só posicionou o homem no epicentro do ordenamento jurídico, garantindo proteção diferenciada aos direitos fundamentais individuais, como também tutelou interesses de cunho coletivo, que ultrapassam a esfera individual, no intuito de possibilitar o próprio gozo dos direitos por todos os integrantes da comunidade política.[11] Sendo assim, o termo interesse público deve ser interpretado como a máxima realização de todos os interesses, individuais e coletivos, protegidos juridicamente.

Trata-se, pois, de uma concepção semelhante à de Marçal Justen Filho, que, ao invés de dissociar, incorpora o interesse privado no interesse público. A preservação da esfera privada do indivíduo em conjunto com a promoção dos anseios da comunidade política representam o verdadeiro interesse público a ser perseguido pela Administração. O decantado princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, desse modo, constitui uma contradição em termos.[12]

O debate está aberto. Cada vez mais autores defendem o abandono teórico do princípio da supremacia, em vista da difícil compatibilização deste princípio com o ordenamento constitucional.[13] Pela consistência dos argumentos apresentados, tudo indica que, em breve, a supremacia do interesse público efetivamente deixará de figurar no rol dos princípios que regem o direito administrativo brasileiro.

Referências

ÁVILA, Humberto. Repensando o “Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular”. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses públicos versus Interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

BINENBOJM, Gustavo. Da Supremacia do Interesse Público ao Dever de Proporcionalidade: Um novo paradigma para o Direito Administrativo. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses públicos versus Interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

______. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.

______. O princípio da Supremacia do Interesse Público: Sobrevivência diante dos ideais do Neoliberalismo. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinicius Alves Ribeiro (coords.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010.

FISCHGOLD, Bruno. Direito Administrativo e Democracia: a inconstitucionalidade do princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994.

______. Curso de Direito Administrativo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

______. Mutações do Direito Administrativo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

Notas


[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 20.

[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 95.

[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2005, p. 68-69.

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O princípio da Supremacia do Interesse Público: Sobrevivência diante dos ideais do Neoliberalismo. In: PIETRO, Maria Sylvia Zanella di; RIBEIRO, Carlos Vinicius Alves (coords.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 95-97.

[5] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 36.

[6] JUSTEN FILHO, 2005, p. 39.

[7] JUSTEN FILHO, 2005, p. 42-43.

[8] JUSTEN FILHO, 2005, p. 45.

[9] BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

[10] BINENBOJM, 2008, p. 89-90.

[11] BINENBOJM, 2008, p. 103.

[12] BINENBOJM, Gustavo. Da Supremacia do Interesse Público ao Dever de Proporcionalidade: Um novo paradigma para o Direito Administrativo. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses públicos versus Interesses privados:desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 168.

[13] Além de Marçal Justen Filho e Gustavo Binenbojm, Humberto Ávila, Daniel Sarmento, Diogo Figueiredo de Moreira Neto, Patrícia Baptista e Luís Roberto Barroso também criticam a utilização do princípio da supremacia.

*Publicado na página www.conjur.com.br

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