A violação à Constituição por meio da omissão legislativa*

- Paulo Vitor Liporaci Giani Barbosa em Direito Administrativo

Atualmente, as Constituições configuram, além de declarações sobre a forma de organização do Estado, cartas que definem uma esfera de direitos fundamentais dos cidadãos de um país e que instituem mecanismos para a sua tutela, dentre os quais se destacam os Tribunais que exercem a jurisdição constitucional.

Esses órgãos do Poder Judiciário são responsáveis pela constante análise, por meio de provocação, da compatibilidade entre os diversos atos jurídicos presentes no ordenamento e o texto constitucional. Na qualidade de guardiões da Constituição, as Supremas Cortes são competentes, assim, para reprimir toda e qualquer violação promovida contra a Carta Magna.

Considera-se possível, hoje1, a existência de violações à Constituição por condutas comissivas e omissivas2. No Brasil, é fácil elencar exemplos de condutas comissivas violadoras da Constituição como a aprovação pelo Poder Legislativo de leis que contrariem a forma federativa do Estado ou como a prática de tortura decorrente do exercício do poder de polícia pelo Poder Executivo. Por constituir um não fazer, no entanto, torna-se mais complexa a identificação da conduta omissiva e em qual medida ela representa uma lesão à ordem constitucional.

A constatação tanto da ação quanto da omissão inconstitucional deriva da aplicação do postulado da supremacia constitucional. Como analisado anteriormente, desse postulado “(…) decorre que nenhuma lei, nenhum ato normativo, a rigor, nenhum ato jurídico, pode subsistir validamente se for incompatível com a Constituição” (BARROSO, 2011, p. 221).

Especificamente em relação à omissão, estará configurada a incompatibilidade do ato jurídico com a Constituição (ou seja, será inconstitucional), quando esta imputar obrigação ao Poder Público de editar comandos normativos essenciais à fruição de direitos nela previstos e este permanecer inerte3.

No entanto, a caracterização e o posterior combate à omissão constitucional sempre estiveram conectados à hercúlea tarefa de identificar, em observância ao princípio republicano, quais condutas podem ser imputadas como obrigatórias ao Podere Legislativo.

Essa difícil missão foi (e é) marcada, principalmente, pela tensão decorrente da aplicação de dois princípios de origem, respectivamente, antiga e recente, quais sejam: o princípio da liberdade de conformação do legislador e o princípio da força normativa da Constituição4.

O princípio da liberdade de conformação do legislador ensina que a atuação dos representantes do povo no Parlamento ocorre concomitantemente nas modalidades positiva e negativa, ou seja, a partir da ação e da omissão na elaboração de comandos normativos. Nas palavras de ANA PAULA DE BARCELLOS, “O silêncio legislativo (…) não é necessariamente um problema a ser resolvido, podendo ser uma opção política válida” (BARCELLOS, 2015, p. 666).

A partir da interpretação descontextualizada do princípio da liberdade de conformação e do reconhecimento do non facere enquanto opção política válida, desse modo, não seria possível imputar qualquer obrigação ao legislador, nem tampouco identificar a ocorrência de omissão inconstitucional derivada do descumprimento desta. Esse era o entendimento até o início do século XX na Alemanha, cujo sistema jurídico influenciou de maneira significativa o brasileiro, conforme salienta GILMAR MENDES:

Observe-se que o reconhecimento da inconstitucionalidade por omissa?o configura feno?meno relativamente recente, tambe?m na dogma?tica juri?dica alema?. Em 1911, ressaltava Kelsen que a configurac?a?o de um dever do Estado de editar determinada lei se afigurava inadmissi?vel. Anteriormente, reconhecera Georg Jellinek que a impossibilidade de formular pretensa?o em face do legislador constitui?a communis opinio. Sob o impe?rio da Constituic?a?o de Weimar (1919) negava-se, igualmente, a possibilidade de se formular qualquer pretensa?o contra o legislador. Esse entendimento assentava-se, de um lado, na ide?ia de uma irrestrita liberdade legislativa e, de outro, na convicc?a?o de que o legislador somente atuava no interesse da coletividade (MENDES, 2009, p. 1.077).

Com a evolução do conhecimento jurídico, no entanto, foi possível constatar que, em determinadas ocasiões, o processo político majoritário, por força da usual dificuldade de composição de quórum, atua de maneira insatisfatória e ocasiona a inércia do Parlamento na tarefa de regulamentar certas matérias. Contudo, em alguns momentos, a opção da sociedade pelo Estado Democrático de Direito não permite tal inércia. É o caso da previsão constitucional de edição de regulamentação necessária à fruição de direitos (normas constitucionais de eficácia limitada).

Como é sabido, reconhecem-se, atualmente, as normas constitucionais enquanto normas jurídicas. No momento em que a Constituição não é tida mais como mera declaração política, exige-se que todo o seu conteúdo surta efeitos concretos, que serão aferidos pelos Tribunais no exercício da jurisdição constitucional.

Nessa linha de entendimento, surge o princípio da força normativa da Constituição. Segundo esse princípio, “(…) na solução dos problemas jurídico-constitucionais deve dar-se prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da constituição (normativa), contribuem para uma eficácia óptima da lei fundamental (…)” (CANOTILHO, 2003, p. 1.224 e 1.226 apud RAMOS, 2015, p. 195 e 196).

Ainda sobre a eficácia (efetividade), LUÍS ROBERTO BARROSO assevera que

“O intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumento da não autoaplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador (BARROSO, 2011, p. 329).

Diante da consolidação da ideia da necessária efetividade das normas constitucionais, passou-se a relativizar a autonomia da função legislativa. O gradual amadurecimento da jurisdição constitucional permitiu o reconhecimento da referida imputação de obrigações ao legislador ordinário e a consequente configuração de omissões inconstitucionais.

ANA PAULA DE BARCELLOS sintetiza o tema de maneira bastante elucidativa:

(…) se denomina autonomia da função legislativa ou liberdade de conformação do legislador, que não legislar é uma das possibilidades disponíveis ao legislador, só sendo possível falar de um dever constitucional de legislar nas hipóteses previstas pela Constituição. (…) não existe um dever geral de legislar oponível ao Legislativo, que tem a liberdade institucional de escolher o que vai ou não regulamentar. O dever de legislar só se verifica nas hipóteses previstas pela Constituição, devendo-se reconhecer, dentro dos limites daquilo que a Constituição definitivamente obriga ou proíbe, a discricionariedade estrutural do legislador (BARCELLOS, 2015, p. 667).

O dever de legislar citado pela autora, no caso brasileiro, deriva das normas constitucionais de eficácia limitada, analisadas no tópico anterior. Isso porque tais normas dependem da atuação positiva do legislador para operarem a plenitude de seus efeitos. Enquanto o Parlamento permanece inerte, fica obstada a fruição de direitos constitucionais pelos indivíduos, o que acaba por lhes causar danos.

Contra essas omissões, de natureza constitucional, a Constituição da República de 1988 criou dois instrumentos jurídicos, que compõem o rol de ações do controle de constitucionalidade. São eles a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção, previstos no art. 103, 2º, e no art. 5º, LXXI, da Carta Magna, respectivamente5.

Frise-se aqui que, ainda que não tivesse ganhado destaque do legislador constituinte, muitos doutrinadores acreditam que a proteção judicial contra as omissões constitucionais poderia ser operada pela aplicação do princípio da inescusabilidade do Poder Judiciário de apreciar lesão ou ameaça a direito. Dentre eles, merece evidência LUÍS ROBERTO BARROSO, cuja lição segue transcrita:

(…) as normas constitucionais definidoras de direitos – isto é, de direitos subjetivos constitucionais – investem os seus beneficiários em situações jurídicas imediatamente desfrutáveis, a serem efetivadas por prestações positivas ou negativas, exigíveis do Estado ou de outro eventual destinatário da norma. Não cumprido espontaneamente o dever jurídico, o titular do direito lesado tem reconhecido constitucionalmente o direito de exigir do Estado que intervenha para assegurar o cumprimento da norma, com a entrega da prestação. Trata-se do direito de ação, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição, em dispositivo assim redigido: ‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’. (BARROSO, 2011, p. 245)

Não se pode negar, portanto, que lesões ou ameaças a direitos, configuradas por atuação comissiva ou omissiva, devem ser alvo da tutela jurisdicional.

A relevância dessa análise reside no fato de que, além de não restar dúvida quanto ao dever de apreciar lesão ou ameaça a direito, imputa-se ao Poder Judiciário, atualmente, a missão de promover o firme combate a violação a direitos fundamentais e de proceder à fiscalização de sua efetivação6.

A central atribuição dos Tribunais Constitucionais vincula-se, hoje, aos direitos fundamentais, cuja proteção configura elemento determinante na verificação da legitimidade do sistema constitucional e da própria democracia. Nessa linha, destacam-se os ensinamentos de JOSÉ ADÉRCIO LEITE SAMPAIO e de CLÁUDIO ARI MELLO, os quais se colacionam, respectivamente:

“Desde a sua veia jusnaturalista e até em formulações positivistas, passou-se a considerar a proteção de certos direitos ditos ‘inalienáveis’ ou ‘fundamentais’ como índice de legitimidade do sistema constitucional, embora fosse denunciada sempre a imprecisão de seu conceito ou a manifestação de sua fundamentalidade” (SAMPAIO, 2002, p. 79) e “(…) a tutela judicial dos direitos constitucionais, na medida em que garante as condições democráticas básicas, assegura em última instância a legitimidade da própria democracia” (MELLO, 2004, p. 189).

Diante das razões expostas, não há duvidas de que, hoje, é amplamente reconhecida a possibilidade de violação à Constituição por meio de condutas omissivas.

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1 “(…) o reconhecimento de inconstitucionalidade por omissão é relativamente recente. Antes, a inconstitucionalidade da lei configurava sempre caso de inconstitucionalidade por ação, ou seja, resultante de um afazer positivo do legislador” (MENDES, 2009, p. 1.076)

2 “Porque assim é, a Constituição é suscetível de violação por via de ação, uma conduta positiva, ou por via de omissão, uma inércia ilegítima” (BARROSO, 2011, p. 246) e “V. STF, ADI 1.458 MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ, 20.09.1996: “O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importara em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação. Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exequíveis, abstendo-se em consequência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público” (apud BARROSO, 2011, p. 246).
3 “A inconstitucionalidade por omissão, como um fenômeno novo, que tem desafiado a criatividade da doutrina, da jurisprudência e dos legisladores, é a que se refere à inércia na elaboração de atos normativos necessários à realização dos comandos constitucionais” (BARROSO, 2011, p. 246).

4 Importa mencionar que o princípio da liberdade de conformação do legislador é denominado, também, de autonomia da função legislativa. Do mesmo modo, o princípio da força normativa da Constituição é chamado de princípio da máxima efetividade.

5 “O constituinte brasileiro de 1988 emprestou significado ímpar ao controle de constitucionalidade da omissão com a instituição dos processos de mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão” (MENDES, 2009, p. 1.076)

6 “(…) já tendo ocorrido a ampla positivação dos direitos, estando o conteúdo dos mesmos já delineado nos textos normativos, a importante discussão a respeito dos direitos fundamentais corresponderia nos dias de hoje apenas à sua efetivação” (TRAVASSOS, 2015, p. 641)

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Referências

BARCELLOS, Ana Paula de. Direito e política. Silêncio do legislador, interpretação e analogia. Jurisdição constitucional e política / coordenação Daniel Sarmento, p. 661-673. – Rio de Janeiro: Forense, 2015.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo / Luís Roberto Barroso – 3. ed. – São Paulo: Saraiva, 2011.

MELLO, Cláudio Ari. Democracia constitucional e direitos fundamentais / Cláudio Ari Mello. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. 315p.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 4. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2009.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos / Elival da Silva Ramos. – 2. ed. – São Paulo: Saraiva, 2015.

SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

* Artigo publicado na página www.migalhas.com.br

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