Em março de 1998, a Advocacia-Geral da União (AGU) editou o Parecer n. GQ-145, que reputou irregular a acumulação de cargos públicos quando a soma das jornadas de trabalho fosse superior a 60 (sessenta) horas semanais. Por ter sido aprovada posteriormente pelo Presidente da República, a observância a essa orientação passou a ser obrigatória por todos os órgãos e entidades da Administração Pública Federal, nos moldes do art. 40, § 1º, da Lei Complementar n. 73, de 10 de fevereiro de 1993.
Desde então, o Poder Executivo federal tem aplicado o referido entendimento aos servidores públicos que, em atenção ao art. 37, XVI, da Constituição da República (CR), acumulam regularmente 2 (dois) cargos, de modo a recomendar a adequação das jornadas de trabalho ao limite de 60 (sessenta) horas semanais, sob pena de exoneração.
Contra esse posicionamento, que materializa indevida restrição a direito constitucionalmente garantido, foram ajuizadas inúmeras medidas judiciais. A discussão desenvolveu-se nas instâncias judiciais ordinárias e, nos tribunais superiores, transformou-se em elemento de insegurança jurídica para os indivíduos submetidos a essa situação.
Há algum tempo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao analisar ações de sua competência originária (ex. mandados de segurança impetrados contra atos de autoridade praticados por Ministros de Estado), no exercício do controle difuso de constitucionalidade — e não de compatibilidade com a legislação infraconstitucional (art. 105, III, da CR) —, entendeu ser devida a limitação imposta pelo Parecer n. GQ-145 da AGU, pois supostamente condizente com o princípio da eficiência administrativa (art. 37, caput, da CR).
Já o Supremo Tribunal Federal (STF), corte responsável pela guarda da Constituição, possui sólido entendimento de que, observada a compatibilidade de horários (inexistência de choque entre jornadas), a restrição veiculada pelo ato da AGU viola frontalmente a garantia prevista no art. 37, XVI, do texto constitucional.
O posicionamento da Suprema Corte foi consignado expressa e reiteradamente em processos relacionados à sua competência recursal extraordinária (art. 102, III, da CR) e ordinária (art. 102, II, da CR). Nessa última hipótese, inclusive, o STF reformou sentença prolatada em ação mandamental analisada originariamente pelo STJ (MS Originário n. 22.002/DF, processado como RMS n. 34.257/DF). Por oportuno, vale conferir trechos dessa decisão:
“(…) Bem examinados os autos, entendo que a pretensão recursal merece acolhida.
Isso porque a jurisprudência desta Corte segue a orientação no sentido de que a acumulação de dois cargos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas, nos termos do art. 37, XVI, c, da Constituição, está condicionada apenas à existência de horários compatíveis entre os cargos exercidos.
Dessa forma, este Tribunal tem afastado o argumento de que a existência de norma infraconstitucional que estipule limitação de jornada semanal constituiria óbice ao reconhecimento do direito à acumulação permitida pela Carta Maior. (…)
Ressalto, ademais, que este Tribunal já se manifestou no sentido da impossibilidade de limitação de jornada pela aplicação do Parecer GQ 145/1998 da Advocacia-Geral da União. (…)
Cumpre destacar, no tema ora em análise, ante a inquestionável procedência de suas observações, o seguinte trecho da decisão proferida pela eminente Ministra CÁRMEN LÚCIA (ARE 693.868/SC), no sentido de que ‘Pela jurisprudência do Supremo Tribunal, não é possível a limitação da carga horária semanal relativa ao exercício cumulativo de cargos públicos, por tratar-se de requisito não previsto na Constituição da República’.
Vale referir, ainda, que esse entendimento vem sendo observado em sucessivos julgamentos, proferidos no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a propósito de questão assemelhada à suscitada em sede recursal extraordinária (AI 762.427/GO Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA — ARE 799.251/DF, Rel. Min. GILMAR MENDES, v.g.)” (grifos no original).
(STF, RMS n. 34.257/DF, Relator Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, DJe de 06/02/2018, grifos aditados).
Diante desses elementos e em atenção à lógica e à organização do sistema judicial brasileiro, nota-se que o STJ (e os demais tribunais pátrios) deve alinhar sua jurisprudência ao entendimento consolidado pelo STF, em razão de ser este o guardião da “última palavra” sobre a interpretação das normas constitucionais, dentre as quais figura a que garante a acumulação de cargos públicos (art. 37, XVI).