No dia 14 de março de 2016, a ex-presidente da República Dilma Rousseff editou o decreto 8.691, que promoveu alterações significativas no Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo decreto 3.048/99.
A principal modificação trazida pelo decreto 8.691/16 consiste na delegação a particulares da função típica de Estado relativa ao reconhecimento da incapacidade laboral para fins de concessão de benefícios previdenciários.
Em outros termos, esse ato infralegal relativizou drasticamente a exigência legal de que a concessão de tais benefícios deva ser precedida de uma avaliação médica realizada por um servidor integrante dos quadros da Administração Pública.
Essa inovação normativa veiculada pelo decreto 8.691/16, no entanto, foi introduzida no ordenamento jurídico em flagrante inobservância à Constituição da República.
Para o que ora importa, faz-se necessária a transcrição dos dispositivos desse ato infralegal que consubstanciam a violação ao texto constitucional:
A PRESIDENTA DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe confere o art. 84, caput, incisos IV e VI, alínea “a”, da CF, e tendo em vista o disposto no art. 60, caput e § 5º, da da lei 8.213, de 24 de julho de 1991,
DECRETA:
Art. 1º O Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo decreto 3.048/99, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 75. …………………………………………………………
§ 2º Quando a incapacidade ultrapassar quinze dias consecutivos, o segurado será encaminhado à perícia médica do INSS, que o submeterá à avaliação pericial por profissional médico integrante de seus quadros ou, na hipótese do art. 75-B, de órgãos e entidades públicos que integrem o Sistema Único de Saúde – SUS, ressalvados os casos em que for admitido o reconhecimento da incapacidade pela recepção da documentação médica do segurado, conforme previsto no art. 75-A……………………………………………………………………….
§ 6º A impossibilidade de atendimento pela Previdência Social ao segurado antes do término do período de recuperação indicado pelo médico assistente na documentação autoriza o retorno do empregado ao trabalho no dia seguinte à data indicada pelo médico assistente.” (NR)
“Art. 75-A. O reconhecimento da incapacidade para concessão ou prorrogação do auxílio-doença decorre da realização de avaliação pericial ou da recepção da documentação médica do segurado, hipótese em que o benefício será concedido com base no período de recuperação indicado pelo médico assistente.
§ 1º O reconhecimento da incapacidade pela recepção da documentação médica do segurado poderá ser admitido, conforme disposto em ato do INSS:
I – nos pedidos de prorrogação do benefício do segurado empregado; ou
II – nas hipóteses de concessão inicial do benefício quando o segurado, independentemente de ser obrigatório ou facultativo, estiver internado em unidade de saúde.
§ 2º Observado o disposto no § 1º, o INSS definirá:
I – o procedimento pelo qual irá receber, registrar e reconhecer a documentação médica do segurado, por meio físico ou eletrônico, para fins de reconhecimento da incapacidade laboral;
II – as condições para o reconhecimento do período de recuperação indicado pelo médico assistente, com base em critérios estabelecidos pela área técnica do INSS.
§ 3º Para monitoramento e controle do registro e do processamento da documentação médica recebida do segurado, o INSS deverá aplicar critérios internos de segurança operacional sobre os parâmetros utilizados na concessão inicial e na prorrogação dos benefícios.
§ 4º O disposto neste artigo não afasta a possibilidade de o INSS convocar o segurado, em qualquer hipótese e a qualquer tempo, para avaliação pericial.” (NR) (…)
“Art. 78. ..
§ 1º O INSS poderá estabelecer, mediante avaliação pericial ou com base na documentação médica do segurado, nos termos do art. 75-A, o prazo que entender suficiente para a recuperação da capacidade para o trabalho do segurado.
§ 2º Caso o prazo concedido para a recuperação se revele insuficiente, o segurado poderá solicitar a sua prorrogação, na forma estabelecida pelo INSS.
§ 3º A comunicação da concessão do auxílio-doença conterá as informações necessárias para o requerimento de sua prorrogação.
§ 4º A recepção de novo atestado fornecido por médico assistente com declaração de alta médica do segurado, antes do prazo estipulado na concessão ou na prorrogação do auxílio-doença, culminará na cessação do benefício na nova data indicada.” (NR) (grifos aditados)
Da leitura do decreto 8.691/16, observa-se que esse ato foi editado com o pretexto de regulamentar (e, consequentemente, encontraria fundamento de validade) o art. 60, caput e § 5º, da lei 8.213/91, que estabelecem:
Art. 60. O auxílio-doença será devido ao segurado empregado a contar do décimo sexto dia do afastamento da atividade, e, no caso dos demais segurados, a contar da data do início da incapacidade e enquanto ele permanecer incapaz. (…)
§ 5º Nos casos de impossibilidade de realização de perícia médica pelo órgão ou setor próprio competente, assim como de efetiva incapacidade física ou técnica de implementação das atividades e de atendimento adequado à clientela da previdência social, o INSS poderá, sem ônus para os segurados, celebrar, nos termos do regulamento, convênios, termos de execução descentralizada, termos de fomento ou de colaboração, contratos não onerosos ou acordos de cooperação técnica para realização de perícia médica, por delegação ou simples cooperação técnica, sob sua coordenação e supervisão, com:
I – órgãos e entidades públicos ou que integrem o Sistema Único de Saúde (SUS);
II – (VETADO);
III – (VETADO). (grifos aditados)
Da análise conjunta do decreto 8.691/16 e da lei 8.213/91, verifica-se que o ato infralegal extrapolou a sua função regulamentar e inovou na ordem jurídica pátria ao permitir que, além dos Peritos Médicos Previdenciários e dos órgãos e entidades públicos ou que integrem o SUS, os médicos particulares dos segurados pudessem realizar as perícias médicas para fins de concessão dos benefícios previdenciários.
A inconstitucionalidade desse dispositivo é flagrante. O decreto 8.691/16 constitui ato normativo autônomo e viola o princípio da reserva legal e, objetivamente, contraria os arts. 84, IV e VI, 194 e 201 da CF, conforme será minudenciado adiante.
A violação ao art. 84, IV e VI, da CF
As competências do Presidente da República estão exaustivamente disciplinadas na CF/88. Entre as atribuições normativas do chefe do Poder Executivo, destaca-se a prerrogativa de edição de decretos.
No ordenamento jurídico brasileiro, os decretos possuem caráter precipuamente regulamentar e destinam-se a definir comandos para garantir a execução das leis promulgadas pelo Congresso Nacional.
A CF também prevê um rol taxativo de hipóteses nas quais se admite a edição de decretos de natureza autônoma, ou seja, que não encontram fundamento de validade em lei previamente existente, mas no próprio texto constitucional.
A edição dos decretos regulamentares e autônomos está prevista, respectivamente, nos incisos IV e VI do art. 84 da Carta Magna, nos seguintes moldes:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (…)
IV – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; (…)
VI – dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;
b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos; (…) (grifos aditados)
Os dispositivos transcritos delimitam as rígidas balizas da atuação normativa infralegal do Chefe do Poder Executivo. Como se observa, o texto constitucional não outorga ao Presidente da República poderes para, mediante decreto, inovar no ordenamento jurídico pátrio.
De acordo com o jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, “inovar quer dizer introduzir algo cuja preexistência não se pode conclusivamente deduzir da ‘lei regulamentada’, verificando-se inovação proibida toda vez que não seja possível ‘afirmar-se que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição incidentes sobre alguém não estavam estatuídos e identificados na lei regulamentada’“.1
A edição do decreto 8.691/16 materializa flagrante violação à CF, visto que esse ato não regulamenta a lei 8.213/91, tampouco se classifica como alguma das hipóteses restritivas de decreto autônomo, previstas no art. 84, VI, ao contrário do consignado em seu preâmbulo2.
Caso o ato normativo estivesse em conformidade com o texto constitucional, teria definido apenas os aspectos executórios relacionados à atuação de “órgãos e entidades públicos ou que integrem o Sistema Único de Saúde (SUS)” e, assim, regulamentado o art. 60, caput e § 5º, da lei 8.213/91.
Entretanto, a alteração e a inclusão de alguns dispositivos do decreto 3.048/99, trazidas pelo art. 1º do decreto 8.691/16, ao permitir que médicos particulares atestem a incapacidade laboral dos cidadãos para fins de concessão de benefícios previdenciários pelo Estado, criou disposição normativa até então inexistente na legislação brasileira.
Por esse motivo, o art. 1º do decreto 8.691/16 constitui hipótese inconstitucional de decreto autônomo.
A violação aos arts. 194 e 201 da CF e ao princípio da reserva legal
Os arts. 194 e 201 do texto constitucional estabelecem a obrigatoriedade da edição de lei (em sentido estrito) para tratar originariamente sobre a organização da previdência e da seguridade social, na qual está inserida a avaliação da incapacidade laboral dos cidadãos e os seus reflexos.
O decreto 8.691/16, em flagrante violação aos artigos constitucionais mencionados, inaugurou uma previsão normativa referente à organização das instituições previdenciárias e securitárias.
No caso em análise, está-se diante de hipótese de reserva legal relativa, que, segundo José Afonso da Silva, “ocorre quando a disciplina da matéria é em parte admissível a outra fonte diversa da lei, sob a condição de que esta indique as bases em que aquela deva produzir-se validamente“3.
O ato infralegal examinado afronta, assim, o princípio da reserva legal, pois não encontra fundamento de validade em lei alguma do ordenamento jurídico brasileiro. Ao dispor originariamente sobre aspectos relacionados à organização da previdência e da seguridade social, o decreto 8.691/16 pretende, de modo anômalo, assumir contornos de lei em sentido estrito.
Nesse ponto, importa transcrever a ementa de julgamento da ADI 2.075/RJ, na qual foi consignado o entendimento firmado pelo STF no que tange à violação ao princípio da reserva de lei:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE (…) FIXAÇÃO DE TETO REMUNERATÓRIO MEDIANTE ATO DO PODER EXECUTIVO LOCAL (DECRETO ESTADUAL Nº 25.168/99) – INADMISSIBILIDADE – POSTULADO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE LEI EM SENTIDO FORMAL (…) MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. REMUNERAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS E POSTULADO DA RESERVA LEGAL. (…)
–- O princípio constitucional da reserva de lei formal traduz limitação ao exercício das atividades administrativas e jurisdicionais do Estado. A reserva de lei – analisada sob tal perspectiva – constitui postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não-legislativos. Essa cláusula constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, eis que a sua incidência reforça o princípio, que, fundado na autoridade da CF, impõe, à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do legislador. Não cabe, ao Poder Executivo, em tema regido pelo postulado da reserva de lei, atuar na anômala (e inconstitucional) condição de legislador, para, em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios critérios, afastando, desse modo, os fatores que, no âmbito de nosso sistema constitucional, só podem ser legitimamente definidos pelo Parlamento. É que, se tal fosse possível, o Poder Executivo passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes. (…)
(STF, Tribunal Pleno, ADI n. 2.075 MC, relator ministro CELSO DE MELLO, DJ de 27.6.2003, grifos aditados)
Como se vê, o STF possui sólido posicionamento de que inexiste previsão constitucional que habilite o Poder Executivo a editar atos que versem originariamente sobre tema reservado, a título primário, à intervenção normativa por meio de leis em sentido formal.
Nesse ponto, vale mencionar que, em situação semelhante à vertente, a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de decreto que objetivava tratar sobre aspectos não veiculados por lei previamente exigida pelo texto constitucional e que, consequentemente, violava o princípio da reserva legal. Confira-se:
(…) AFRONTA AO PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL (ART. 150, I, DA CF). ENTENDIMENTO FIXADO EM PRECEDENTE COM REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. (…)
III – Essa Corte, no julgamento de feito com repercussão geral reconhecida, RE 648.245/MG, rel. min. Gilmar Mendes, reiterou seu entendimento no sentido de que, com base no princípio da reserva legal (art. 150, I, da CF), somente por lei em sentido formal é possível instituir, alterar ou majorar a base de cálculo do IPTU, cabendo apenas sua atualização por meio de decreto, desde que em patamar inferior aos índices inflacionários oficiais de correção monetária.
IV – É inconstitucional decreto que, pela primeira vez, estabelece os valores (avaliação individual) que servem de base de cálculo para exigir o IPTU sobre os imóveis descritos nos autos, ainda que se trate de bem que surgiu após a a lei que prevê a planta genérica de valores que servem de base para cálculo do imposto.
V – Agravo regimental a que se nega provimento.
(STF, Segunda Turma, ARE 820303 ED, Relator Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, DJe de 17.9.2014, grifos aditados)
Guardadas as devidas especificidades, assim como “é inconstitucional o decreto que, pela primeira vez estabelece os valores que servem de base de cálculo para exigir o IPTU“, também o é o decreto 8.691/16, que inaugura a concessão de benefícios previdenciários com base na mera recepção de laudos emitidos por médicos assistentes, que configura procedimento inédito na legislação pátria.
Por fim, cumpre salientar que, a partir da análise comparativa entre a redação da Medida Provisória 664/14, da lei 13.135/15 e do decreto 8.691/16, é possível constatar a flagrante intenção do Poder Executivo de fazer prevalecer, pela via inadequada, uma previsão normativa já rechaçada pelo Congresso Nacional.
Quando da edição da MP 664/14, o Chefe do Poder Executivo objetivou delegar a diversos atores a atribuição de atestar a incapacidade laboral dos cidadãos para fins de concessão de benefícios previdenciários, nos seguintes termos:
Art. 1º A lei 8.213/91, passa a vigorar com as seguintes alterações: (…)
“Art. 60. O auxílio-doença será devido ao segurado que ficar incapacitado para seu trabalho ou sua atividade habitual, desde que cumprido, quando for o caso, o período de carência exigido nesta lei: (…)
§ 5º O INSS a seu critério e sob sua supervisão, poderá, na forma do regulamento, realizar perícias médicas:
I – por convênio ou acordo de cooperação técnica com empresas; e
II – por termo de cooperação técnica firmado com órgãos e entidades públicos, especialmente onde não houver serviço de perícia médica do INSS. (…)
Entretanto, após o trâmite no Congresso Nacional, a MP 664/14 foi convertida na lei 13.135/15, que dispôs:
Art. 1º A lei 8.213/91, passa a vigorar com as seguintes alterações: (…)
Art. 60. O auxílio-doença será devido ao segurado empregado a contar do décimo sexto dia do afastamento da atividade, e, no caso dos demais segurados, a contar da data do início da incapacidade e enquanto ele permanecer incapaz. (…)
§ 5º Nos casos de impossibilidade de realização de perícia médica pelo órgão ou setor próprio competente, assim como de efetiva incapacidade física ou técnica de implementação das atividades e de atendimento adequado à clientela da previdência social, o INSS poderá, sem ônus para os segurados, celebrar, nos termos do regulamento, convênios, termos de execução descentralizada, termos de fomento ou de colaboração, contratos não onerosos ou acordos de cooperação técnica para realização de perícia médica, por delegação ou simples cooperação técnica, sob sua coordenação e supervisão, com:
I – órgãos e entidades públicos ou que integrem o Sistema Único de Saúde (SUS);
II – (VETADO);
III – (VETADO).
Do transcrito, observa-se que a intervenção normativa originária do Poder Executivo sofreu significativa alteração pelo Congresso. Transcorridas todas as etapas do processo legislativo de conversão de medidas provisórias, a atribuição de reconhecer a incapacidade laboral dos segurados para fins de concessão de benefícios previdenciários foi estendida apenas aos “órgãos e entidades públicos ou que integrem o Sistema Único de Saúde (SUS)“.
Frustrada a tentativa do Poder Executivo de inovar no ordenamento jurídico por meio de medida provisória, a Presidente da República objetivou veicular essa inovação, de modo inconstitucional, mediante a edição do decreto 8.691/16, conforme demonstrado.
Por fim, cumpre destacar que a constitucionalidade desse ato infralegal foi questionada perante o STF por meio da ADI 5.495/DF, ajuizada pela Associação Nacional dos Médicos Peritos da Previdência Social (ANMP) e distribuída à relatoria do Ministro LUIZ FUX.
As consequências práticas da aplicação integral do decreto 8.691/16 são extremamente lesivas ao erário, visto que permitem a concessão indiscriminada de benefícios previdenciários com base na mera apresentação de laudos emitidos por médicos particulares, que não possuem vínculo algum com a Administração Pública.
Diante da gravidade desse cenário, a Suprema Corte deverá, em breve, pronunciar-se sobre a compatibilidade do ato normativo em relação à Constituição da República.
__________
1 Celso Antônio Bandeira de Mello, Ato administrativo e direitos dos administrados, cit., p. 98.
2 A PRESIDENTA DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe confere o art. 84, caput, incisos IV e VI, alínea “a”, da CF, e tendo em vista o disposto no art. 60, caput e § 5º, da lei 8.213/91, DECRETA: (…) (grifos aditados)
3 José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 22ª ed., p. 422.
*Artigo publicado na página www.migalhas.com.br