Desde o ano passado, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 186, de autoria da base aliada ao Governo no Senado Federal; e a PEC n. 438, apresentada pelo Deputado Pedro Paulo do DEM-RJ, as quais integram o pacote da chamada “Reforma Administrativa”, cujo o principal objetivo é reduzir gastos com o funcionalismo público, têm sido acompanhadas atentamente pelas entidades representativas dos servidores públicos federais. Estas PECs impõem severas restrições de direitos, como a redução de jornada, com o consequente corte de remuneração.
Com o recente reconhecimento pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 11 de março de 2020, do estado de pandemia da COVID-19, a agenda de reformas empreendida pelo Governo Bolsonaro parecia ter perdido força.
Contudo, na última sexta-feira, 20 de março, com a aprovação do Decreto Legislativo n. 06, que reconheceu a ocorrência de estado de calamidade pública no país até 31 de dezembro de 2020, a redução de carga horária com o consequente corte de remuneração dos servidores públicos federais ressurgiu como medida supostamente adequada à economia de bilhões de reais pelo Poder Público que poderiam ser destinados à adoção de medidas para conter o avanço do Coronavírus (COVID-19).
O movimento ganhou força em 24 de março de 2020, quando o Presidente da Câmara dos Deputados, Deputado Federal Rodrigo Maia, em entrevista à Rádio Bandeirante, sugeriu que os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário avaliassem uma redução de até 20% (vinte por cento) na remuneração dos respectivos servidores. A declaração repercutiu nos principais, se não em todos, os meios de comunicação do país. A medida inclusive foi anunciada como a contribuição do setor público frente as proposições trazidas pela Medida Provisória (MP) n. 927/2020 para o âmbito privado.
Pouco depois, no final da tarde da terça-feira, já circulavam pelos grupos de conversas Projeto de Lei de autoria do Deputado Federal Carlos Sampaio (PSDB/SP) e uma PEC do Deputado Federal Ricardo Izar (Progressistas/SP) que propunham essas reduções aos servidores com remuneração superior a R$ 5.000,00 (cinco mil reais) até o fim do estado de calamidade pública instituído pelo Decreto Legislativo n. 06/2020.
Ocorre que ambas as propostas padecem de patentes inconstitucionalidades, na medida em que uma lei federal não pode violar a garantia da irredutibilidade de vencimentos dos agentes públicos, prevista no art. 37, XV, da Constituição da República. A rigidez constitucional visa, entre outras coisas, à preservação da ordem jurídica em momentos de substancial instabilidade política, como a vivenciada atualmente no país. Alterar o texto constitucional, sacrificando direitos de natureza fundamental dos trabalhadores, é inviável em estado de calamidade pública, no qual o processo legislativo não está em condições de plena normalidade. A Presidência da República reconheceu a
anormalidade do momento atual na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 663, em que se requer a suspensão dos prazos de validade de medidas provisórias durante o atual cenário político, econômico e social.
Ademais, é possível argumentar vício de iniciativa nas propostas, visto que o Legislativo não pode propor alteração na remuneração de servidores do Executivo e do Judiciário, bem como desvio de finalidade, pois busca-se implementar alteração já antes almejada com base em fundamento novo: a pandemia.
No final da noite do mesmo dia, 24 de março, foi veiculada, também pelas redes sociais, a informação de que o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Dias Toffoli, teria recebido o compromisso do Congresso Nacional de que não haveria redução de subsídios e vencimentos de agentes públicos federais em razão da crise do Coronavírus. Com isso, o tema saiu das manchetes da mídia nacional. Apenas esparsas notícias suscitaram, no dia 25 de março, que a questionável medida comporia PEC do “Orçamento de Guerra”, cujo objetivo seria levantar recursos para o combate aos efeitos da pandemia, contudo, em menor abrangência, sem atingir a totalidade dos servidores públicos federais.
Nesse cenário, o acompanhamento dos acontecimentos para a rápida contestação de eventuais medidas se mantém. Seja por meio da tramitação das PECs 186 e 438 ou da proposição de novo ato legislativo, o corte salarial pretendido viola direito fundamental dos ocupantes de cargos públicos quanto à garantia de irredutibilidade dos subsídios e vencimentos e, e, por isso, caso concretizada qualquer ação nesse sentido, haverá contestação perante o Judiciário, que, ao menos, que já acenou pela sua inconstitucionalidade.