Averbação de tempo em atividade rural no regime próprio dos servidores públicos: necessidade de recolhimento de contribuições previdenciárias indenizadas e parâmetros de cálculo*

- Renan Palhares Torreão Braz em Direito Administrativo

O servidor público, mesmo já aposentado, que tenha averbado atividade rural em seu tempo contributivo total terá que indenizar o período respectivo para fins de obtenção de sua aposentadoria ou para ter seu benefício chancelado pelo Tribunal de Contas da União. Entretanto, os parâmetros de cálculo da indenização demandada pela Corte de Contas devem ser combatidos judicialmente.

Até o advento da Constituição da República de 1988, o trabalho rural possuía regulamentação e tratamento diversos do trabalho urbano, quando então essa disparidade foi extinta, como se vê, v.g., pelos seus arts. 7º e 1941.

Saliente-se que a tutela da condição do trabalhador rural ganhou vigor a partir da lei 4.214/63, o Estatuto do Trabalhador Rural, que instituiu o FUNRURAL, Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural, cujo custeio advinha exclusivamente do produtor rural, pelo fruto de 1% da receita de produtos agropecuários comercializados2.

Sucede que o trabalhador rural, que não era obrigado ao recolhimento de qualquer contribuição previdenciária, uma vez estabelecida sua isonomia ao trabalhador urbano pela atual Constituição, foi contemplado pela criação do Regime Geral de Previdência Social, passando a figurar entre o rol dos segurados obrigatórios, conforme art. 11 da lei 8.213/91, instituidora do Regime.

No que concerne às contribuições previdenciárias, essa lei previu, em seu art. 55, parágrafo segundo, que “o tempo de serviço do segurado trabalhador rural, anterior à data de início de vigência desta Lei, será computado independentemente do recolhimento das contribuições a ele correspondentes, exceto para efeito de carência, conforme dispuser o Regulamento”.

Com isso, entende-se, de um lado, que há “possibilidade de contagem do tempo de serviço rural anterior à data de vigência da Lei 8.213/91, independentemente do recolhimento de contribuição, para fins de aposentadoria no Regime Geral de Previdência Social (art. 55, § 2.º, da Lei 8.213/91)” (Tribunal de Contas da União. Acórdão 1893/2006 – Plenário).

Lado outro, a lei 8.213/913, em seu art. 55, § 1º, exigiu o recolhimento das contribuições correspondentes ao período em atividade não filiada ao RGPS, leia-se, ao período de labor rural, ao trabalhador posteriormente ingresso em cargo público vinculado a Regime Próprio de Previdência Social.

Entretanto, muitos foram os casos em que servidores públicos, tendo desempenhado trabalho rural nas décadas de 1960 e 1970, por exemplo, aposentaram-se no regime próprio na década de 1990, averbando tais atividades em seu tempo de serviço total, sem o recolhimento referente a tais períodos.

Significa dizer que, após feito o crivo de legalidade pela Administração Pública, autorizou-se a passagem à inatividade de inúmeros servidores públicos, estes, meros administrados e, a princípio, desconhecedores das mutações legislativas aplicáveis aos próprios casos.

Adiante, cerca de uma década após, o TCU negou chancela (art. 71, III, CF/884) a tais aposentadorias, fato que levou os servidores públicos aposentados à justiça para discussão da questão.

Nessa ocasião, o STF passou a manifestar entendimento de que a contagem recíproca de períodos transmudados entre o RGPS e o RPPS pressuporia o recolhimento das contribuições previdenciárias atinentes (MS 26919, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 14/4/08, DJe-092 DIVULG 21/5/08 PUBLIC 23/5/08 EMENT VOL-02320-02 PP-00292).

Tal entendimento foi secundado pelo STJ, como se vê: “É firme a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal no sentido de ser inadmissível o cômputo do tempo de serviço prestado na atividade privada, urbana ou rural, antes da edição da Lei 8.213/1991, para a aposentadoria no regime estatutário, sem que seja comprovado o recolhimento das contribuições referentes ao período pleiteado ou realizada a devida indenização. (REsp 1.266.143/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 2/10/14, DJe 9/10/14)”

Com efeito, tem-se cristalizada a necessidade de recolhimento das contribuições ou de indenização correspondente, para efeitos de averbação do período rural ao tempo contributivo do servidor público, fundamento este utilizado pelo TCU para negar chancela de aposentadoria dos servidores inativos nesta condição, ainda que tenha feito esse controle, em muitos casos, mais de 10 (dez) anos após a concessão originária da aposentadoria.

Sob esse ponto de vista, a imposição de tal indenização mesmo após longos anos, até décadas, desde a passagem do servidor à inatividade, como ocorrido em diversos casos judicializados, consubstancia inegável afronta ao Princípio da Segurança Jurídica5 não remediada pelo Supremo Tribunal Federal, que afastou a limitação trazida pelo art. 54 da lei 9.784/99, sob o frágil fundamento de que a aposentadoria seria ato complexo e, assim, se aperfeiçoaria somente após a chancela do TCU (MS 30812 AgR, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 19/5/15, Processo Eletrônico DJe-107 DIVULG 3/6/15 PUBLIC 5/6/15).

Em termos singelos, definiu-se não haver prazo para “revisão” de aposentadorias por parte da Administração Pública, ao passo que os servidores públicos, quando interessados, poderão fazê-lo em 5 (cinco) anos, conforme art. 1º do Decreto n. 20.910/32, sem poder gozar da dita natureza complexa do ato administrativo (STJ. 1ª Seção. Pet 9.156-RJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 28/5/14, Info 542)6.

Como se percebe, o posicionamento prevalecente nos Tribunais pátrios força o servidor público, já em idade avançada, a estudar a hipótese de indenização para não sofrer reflexos nos pagamentos de suas verbas alimentares, o que é trazido pelo TCU com base no art. 45-A da lei 8.212/917.

Sabe-se que as contribuições previdenciárias discutidas não apenas se fundamentam pela ótica tributária, o que avocaria a discussão de sua prescrição e decadência, mas também pela necessidade de atendimento a requisito elementar à concessão do benefício previdenciário, o tempo contributivo8.

É perceptível pela leitura do dispositivo que a aludida indenização demandada pela Corte de Contas é composta pela: a) base de cálculo vinculada à última remuneração base de contribuição, ou ao teto de contribuição do INSS, atualmente em R$ 4.663,75; b) alíquota de 20%; c) incidência de juros de mora de 0,5% ao mês, capitalizados anualmente, limitados ao percentual máximo de 50%; d) incidência de multa de 10%.

Em se tratando de juros de mora e multa, em alinhamento ao Princípio da Irretroatividade, notadamente em matéria previdenciária, “o STJ possui jurisprudência sedimentada no sentido de que somente incidem juros e multa sobre as contribuições previdenciárias recolhidas para fins de contagem recíproca se o período a ser indenizado for posterior ao início da vigência da MP 1.523/1996”, quando inaugurada a previsão de juros e multa para tais fins no ordenamento jurídico, pelo já revogado art. 45, § 4º, da lei 8.212/91 (REsp 1.348.027/ES, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 23/10/12, DJe 31/10/12).

O mesmo entendimento se aplica à alíquota, já que a previsão de incidência de 20% adveio da LC 128/08 (Processo 9346-04.2014.4.01.3400, 15ª Vara Federal da Seção Judiciária do DF).

Com relação à base de cálculo, resgatada a noção da remuneração do labor rural de cerca de 50 anos atrás, tem-se como exorbitante e fora de razoabilidade a cobrança do teto de contribuição do RGPS – muitas vezes inferior ao salário de contribuição do servidor público quando em atividade –, o que acarretaria enriquecimento ilícito em favor do Estado, vedado pelo CC/02 (art. 884) e repudiado pela coletividade.

A título exemplificativo, a LC 11/71, que regulamentou o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (Prorural), previa benefícios de 50% do maior salário mínimo vigente no país em função de aposentadoria por idade, aos 65 anos, e aposentadoria por invalidez do trabalhador rural9.

Entende-se, por tudo, que o salário mínimo da época atualizado, o que pode se aproximar ao salário mínimo atual, deve ser utilizado como base para a indenização em discussão, o que avoca a aplicação da alíquota de 11%, segundo tabela do INSS10 para contribuinte individual e facultativo, sem incidência de juros de mora, multa e correção monetária.

A seguinte tabela bem ilustra a controvérsia em voga:

Cálculo das contribuições previdenciárias indenizadas

Critérios adotados pelo TCU

Critérios que devem ser aplicados

Incidência de juros de mora e multa

Sim, em todos os casos.

Não, caso a atividade rurícola tenha se dado em data anterior a 11/10/1996 (MP n. 1.523/1996)

Base de cálculo

Última remuneração base de contribuições vertidas ao RPPS ou teto do RGPS, o que for menor.

Salário mínimo da época corrigido monetariamente.

Alíquota

20%

11%

Como resultado aritmético, calcula-se a distorção do valor demandado pelo TCU em, pelo menos, 20 vezes superior ao efetivamente devido pelo servidor, considerados os critérios de cálculo ora defendidos, em caso de necessidade de recolhimento das contribuições previdenciárias indenizadas.

Aos indivíduos enquadrados no contexto aqui tratado, recomenda-se a procura por um profissional especializado no tema, certo de que as alternativas aqui expostas dependem, na maioria dos casos, de intervenção judicial voltada à tutela do servidor público.

_____________

1 Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

[…]

Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: II – uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais;

2 IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 16. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011.

3 Art. 55, § 1º, Lei n. 8.213/91: § 1º A averbação de tempo de serviço durante o qual o exercício da atividade não determinava filiação obrigatória ao anterior Regime de Previdência Social Urbana só será admitida mediante o recolhimento das contribuições correspondentes, conforme dispuser o Regulamento, observado o disposto no § 2º.

4 Art. 71, CR/88. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: III – apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório;

5 O Princípio da Segurança Jurídica já foi aplicado à hipótese pelo próprio Tribunal de Contas da União, como se vê: Acórdão n° 2417/2009, Plenário. Relator Ministro AUGUSTO NARDES. Sessão do dia 14/10/2009; Acórdão n° 1502/2012, Primeira Câmara. Relatora Ministra ANA ARRAES. Sessão do dia 27/03/2012.

6 A esse respeito, convém consignar que a figura do ato composto se amolda melhor ao ato de concessão de aposentadoria, já que, da concessão inicial, seus efeitos jurídicos esperados já são verificados: em vez de remuneração, o servidor passa a auferir proventos; seu cargo é desde então considerado vago para preenchimento por novo servidor. A chancela do TCU é dada na qualidade de controle de legalidade a posteriori.

7 Art. 45-A, Lei n. 8.212/91. O contribuinte individual que pretenda contar como tempo de contribuição, para fins de obtenção de benefício no Regime Geral de Previdência Social ou de contagem recíproca do tempo de contribuição, período de atividade remunerada alcançada pela decadência deverá indenizar o INSS. (Incluído pela Lei Complementar nº 128, de 2008)

§ 1º O valor da indenização a que se refere o caput deste artigo e o § 1o do art. 55 da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, corresponderá a 20% (vinte por cento): (Incluído pela Lei Complementar nº 128, de 2008)

I – da média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição, reajustados, correspondentes a 80% (oitenta por cento) de todo o período contributivo decorrido desde a competência julho de 1994; ou (Incluído pela Lei Complementar nº 128, de 2008)

II – da remuneração sobre a qual incidem as contribuições para o regime próprio de previdência social a que estiver filiado o interessado, no caso de indenização para fins da contagem recíproca de que tratam os arts. 94 a 99 da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, observados o limite máximo previsto no art. 28 e o disposto em regulamento. (Incluído pela Lei Complementar nº 128, de 2008)

§ 2º Sobre os valores apurados na forma do § 1o deste artigo incidirão juros moratórios de 0,5% (cinco décimos por cento) ao mês, capitalizados anualmente, limitados ao percentual máximo de 50% (cinqüenta por cento), e multa de 10% (dez por cento). (Incluído pela Lei Complementar nº 128, de 2008)

§ 3º O disposto no § 1º deste artigo não se aplica aos casos de contribuições em atraso não alcançadas pela decadência do direito de a Previdência constituir o respectivo crédito, obedecendo-se, em relação a elas, as disposições aplicadas às empresas em geral. (Incluído pela Lei Complementar nº 128, de 2008) (grifos aditados)

8 IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 16. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011.

9 SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito previdenciário esquematizado. 2. Ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.

10 Vide http://www8.dataprev.gov.br/e-aps/servico/147

*Publicado na página www.migalhas.com.br