Em 17 de abril de 2020, foi publicada a Medida Provisória n. 954/2020 que dispõe sobre o compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações durante a situação de emergência de saúde pública decorrente da COVID-19. O intuito da norma é dar suporte à produção estatística oficial enquanto não for superada a pandemia.
O ato normativo estabelece que empresas de telefonia fixa e móvel deverão disponibilizar a relação de nomes, endereços e números de telefones de pessoas físicas ou jurídicas com a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os dados compartilhados devem possuir caráter sigiloso e terão como fim a realização de entrevistas não presenciais no âmbito das pesquisas domiciliares.
A norma veda a utilização desses dados como objeto de certidão ou meio de prova em processo administrativo, fiscal ou judicial, bem como o seu fornecimento a empresas públicas e privadas ou a órgãos e entidades da Administração Pública.
Além disso, estabelece a obrigatoriedade de publicação, pela Fundação IBGE, das situações em que os dados forem empregados e do relatório de impacto desse uso à proteção de dados pessoais. Passada a pandemia da COVID-19, as informações compartilhadas deverão ser excluídas das bases de dados do Instituto.
No cenário da pandemia, se tornou natural considerar o tratamento de dados como aparato de combate ao Coronavírus.
Isso não implica, contudo, em mitigação ou restrição ao direito fundamental à proteção de dados. Pelo contrário, é certo que tal prática pode se efetivar sem que isso signifique uma desconsideração aos diplomas protetivos às informações pessoais.
Nesse sentido, conquanto ainda não esteja vigente a LGPD – em 03/04/2020, o Congresso Nacional aprovou a prorrogação da sua vigência para janeiro de 2021, com início da aplicação das sanções somente em agosto de 2021 – é recomendável o acolhimento de suas diretrizes e princípios para o tratamento de dados pessoais em um contexto como o presente.
Isso porque a legislação de proteção de dados brasileira, ao conter previsões que legitimam a utilização das informações pessoais no atual cenário – por exemplo, para persecução do interesse público, para concretização de políticas públicas e para a tutela da saúde –, confere segurança jurídica para o fornecimento e o tratamento de dados para essas finalidades.[1] Além disso, o diploma traz a base principiológica – reverberada, em parte, em outras leis já vigentes – que deve guiar esse tratamento.
A própria MP n. 954, inclusive, abarcou exigências que remetem a disposições da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)[2] – como exemplo, a necessidade de apresentação, pelo IBGE, do relatório de impacto.[3]
Apesar disso, no que diz respeito ao atendimento a outras balizas da LGPD e a determinados direitos, como o direito à proteção de dados, da intimidade, do sigilo, da vida privada, das correspondências e das comunicações telefônicas, a publicação da MP n. 954 levantou controvérsias.
Por um lado, o texto não especifica o tipo de pesquisa a que se destinam os dados pessoais – o que pode gerar o não atendimento ao Princípio da Finalidade[4], previsto no inciso I do artigo 6º da LGPD. Quanto a esse ponto, a norma somente indica que o fornecimento das informações pessoais subsidiará a realização de entrevistas não presenciais para pesquisas em âmbito domiciliar.
Sob esse prisma, caso as estatísticas oficiais a que se destinam o tratamento dos dados não objetivem o combate ao Coronavírus ou qualquer outro fim urgente, não haveria motivos para que a coleta das informações pessoais – que, pela sua delicadeza, deve se limitar ao mínimo necessário para o atendimento às finalidades especificadas em lei[5] – ocorresse no atual momento e através da edição de uma medida provisória.
Assim, embora um objetivo geral possa englobar um objetivo mais específico – o enfrentamento da COVID-19 –, surge a indagação se a redação da norma abriria uma janela para que as informações pessoais sejam disponibilizadas em desrespeito à base principiológica contida na LGPD e em outros diplomas legais, bem como a direitos de cunho constitucional.
Nesse viés, além da obscuridade quanto à finalidade do tratamento dos dados pessoais, argumenta-se também que a norma não especifica as medidas de segurança, as formas de monitoramento ou supervisão, a razão da sua urgência, o que, além de que traria prejuízos aos mencionados direitos fundamentais[6], iria de encontro ao Princípio da Transparência, também amparado pela LGPD[7].
Por outro lado, a MP n. 954 faz menção expressa à Lei n. 13.979/2020 – Lei do Coronavírus –, que dispõe sobre as medidas de enfrentamento da situação de emergência de saúde pública decorrente da COVID-19. O artigo 6º desse diploma legal estabelece a obrigatoriedade de compartilhamento de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção pela COVID-19, exclusivamente, com o objetivo de evitar a propagação do vírus.
Sob o fundamento de que a MP afronta direitos fundamentais, o Partido Socialista Brasileiro (PSB), o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ingressaram com quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), perante o Supremo Tribunal Federal (STF).
A OAB e o PSOL questionam a integralidade do ato normativo. O PSDB e o PSB, por sua vez, argumentam a inconstitucionalidade de apenas alguns dispositivos da norma.
A relevância do ajuizamento dessas ações, contudo, não está adstrita à possível declaração de inconstitucionalidade de parte ou da íntegra da MP. Para além disso, as ADIs podem ser um instrumento que levará, ao Supremo Tribunal Federal, o debate acerca do Direito à Autodeterminação Informativa – previsto no inciso II do artigo 2º da LGPD –, assim como a sua afirmação como um direito fundamental.
Para viabilizar a execução das diretrizes estabelecidas pela MP, foi publicada a Instrução Normativa n. 2 do IBGE que estabelece os procedimentos que guiarão a disponibilização dos dados pessoais pelas empresas de telefonia. Além disso, a Ministra Rosa Weber, relatora das ADIs, determinou que a Anatel e o IBGE prestem esclarecimentos acerca da disponibilização dos dados pessoais prevista na MP n. 954.
A íntegra da MP n. 954/2020 pode ser acessada no link http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/mpv954.htm.
[1] DONEDA, Danilo. A proteção de dados em tempos de coronavírus. A LGPD será um elemento fundamental para a reestruturação que advirá após a crise. Publicado no Jota em 25/03/2020. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-protecao-de-dados-em-tempos-de-coronavirus-25032020.
[2] Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018.
[3] Segundo o inciso XVII do artigo 5º da LGPD, o relatório de impacto à proteção de dados pessoais consiste em “documentação do controlador que contém a descrição dos processos de tratamento de dados pessoais que podem gerar riscos às liberdades civis e aos direitos fundamentais, bem como medidas, salvaguardas e mecanismos de mitigação de risco”. O artigo 38 estabelece a possibilidade de solicitação, pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados, de elaboração de relatório de impacto à proteção de dados pessoais referente às operações de tratamento de dados.
[4] Segundo o inciso I do artigo 6º da LGPD, para efetivação do Princípio da Finalidade, deve ser efetuada a “realização do tratamento para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades”.
[5] O inciso III do artigo 6º da LGPD afirma que as atividades de tratamento de dados devem observar o Princípio da Necessidade, segundo o qual deve haver uma “limitação do tratamento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados”.
[6] DONEDA, Danilo. Proposta ADI em face da Medida Provisória que obriga compartilhamentode dados de usuários de telefones. 20/04/2020. Disponível em: http://www.doneda.net/2020/04/20/proposta-adi-em-face-de-medida-provisoria-que-obriga-compartilhamento-de-dados-de-usuarios-de-telefones/
[7] Segundo o inciso VI do artigo 6º da LGPD, o Princípio da Transparência consiste na “garantia, aos titulares, de informações claras, precisas e facilmente acessíveis sobre a realização do tratamento e os respectivos agentes de tratamento, observados os segredos comercial e industrial”.