PEC n. 23/2021: uma análise sob a ótica dos precatórios alimentares

em Direito Administrativo Execuções Contra a Fazenda Pública

Na última terça-feira (9), a Câmara dos Deputados aprovou, em segundo turno, a Proposta de Emenda à Constituição n. 23/2021, que impõe limitação ao valor destinado ao pagamento de precatórios. Segundo Hugo Motta, deputado relator da PEC, o intuito do texto é o de equacionar o pagamento dos precatórios, que “poderão inviabilizar uma série de ações governamentais”, de modo a “conciliar interesses de credores e do Estado”.

Tal medida suscita discussões a respeito da situação em que os precatórios de natureza alimentar se enquadrariam, uma vez que, pelo texto original, havia a previsão de parcelamento quando os valores ultrapassassem R$ 66 milhões e quando o montante dos precatórios superasse 2,6% da Receita Corrente Líquida.

Diante da tentativa do Governo Federal de contornar sua dívida por meio da interferência nos precatórios expedidos no ano de 2021 (cerca de R$ 89,1 bilhões, segundo o Poder Judiciário), o deputado relator havia retirado da proposta inicial do texto a previsão do parcelamento em 10 anos dos precatórios de valores mais altos (alteração do § 20º, do art. 100, da Constituição da República, pretendida pelo texto original).

Para 2022, o texto impõe, por meio do art. 107-A, a fixação do limite de gastos com precatórios referente ao valor da despesa paga no exercício de 2016, corrigido pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulado. De acordo com o § 1º do mencionado artigo, o limite seria considerado quando da expedição de precatórios, isto é, em momento anterior à efetiva inclusão dos valores no orçamento.

As requisições de pequeno valor, segundo o texto aprovado, terão prioridade no pagamento e não deverão ser abatidas do limite imposto.

Com o estabelecimento do teto, haveria, segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), cerca de R$ 40 bilhões, dos R$ 89,1 bilhões inscritos no orçamento, que seriam adimplidos em 2022. Nesse cenário, os pagamentos que não se encaixarem no teto fixado seriam pagos somente no ano seguinte, com prioridade.[1]

A previsão de um teto para a expedição de precatórios poderá, inclusive, gerar uma espécie de “corrida” entre os tribunais de todo o país para que os precatórios sejam inscritos o mais rápido possível no orçamento, visando o alcance, pelos tribunais, de metas internas.

Contudo, essa “corrida” poderia prejudicar os tribunais com maior número de processos em curso e que atendem a estados maiores ou mais numerosos, como é o caso do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, o maior tribunal regional federal do país, que abrange 14 unidades da federação, considerando que o segundo maior tribunal regional abrange apenas 6 unidades da federação, o TRF5.

Com o novo texto, o deputado relator Hugo Motta deixa de indicar mudanças nos §§ 1º e 2º, do art. 100, da Constituição da República, os quais tratam dos precatórios de natureza alimentícia, de modo que, a princípio, o texto sugere a manutenção da ordem de preferência dos débitos dessa natureza, bem como a disposição acerca da parcela superpreferencial, que teve os seus dispositivos regulamentadores suspensos em razão da ADI n. 6556.

A leitura do texto, portanto, leva a crer que os precatórios seriam pagos de forma integral, segundo sua ordem de apresentação, até o teto fixado. Uma vez que os precatórios de caráter alimentar possuem preferência sobre os demais, em tese, haveria o adimplemento desse tipo de verba, de modo que os valores que não possuem natureza alimentícia seriam pagos apenas no ano subsequente, com ordem de preferência.

Quanto aos credores não contemplados no orçamento disponível, haverá a opção, inclusive para aqueles que teriam depósito em 2022, de recebimento de apenas 60% do valor em parcela única até o final do ano subsequente. Para a quitação desse tipo de crédito, a proposta de emenda abre margem para a criação de créditos adicionais durante o ano de 2022, o que evidencia a tentativa de adimplemento das dívidas da Fazenda Pública, ainda que mediante a renúncia de 40% do valor a que tem direito, pelo beneficiário.

Ocorre que tal solução também pode ser contestável, pois, ao longo dos anos, os precatórios que não possuem caráter alimentar e que, a princípio, não são alcançados pela ordem de preferência, passariam a acumular a preferência pelo simples fato de o seu pagamento ter sido postergado para o ano seguinte.

No entanto, no ano subsequente, haverá novos precatórios de natureza alimentícia, os quais podem, inclusive, alcançar o teto estipulado antes mesmo de os precatórios que não possuem essa natureza serem expedidos, o que ensejará uma concorrência entre créditos que possuem preferência, ainda que esta tenha sido atribuída de formas diferentes.

Por isso, a real efetivação do § 4º, do art. 107-A, o qual prevê a regulamentação, pelo CNJ, da atuação dos presidentes dos tribunais competentes é de extrema relevância, a fim de conferir maior segurança jurídica frente às mudanças trazidas pela proposta de emenda.

No que diz respeito à parcela superpreferencial, chama-se a atenção para o fato de que, desde a redação do § 2º, do art. 100, conferido pela Emenda Constitucional n. 94, de 2016, os beneficiários dos créditos enquadrados nessa situação aguardavam a regulamentação do tema, que foi feita apenas em 2019, por meio da Resolução n. 303/2019, emitida pelo CNJ.

É dizer, os beneficiários de créditos oriundos de sentenças judiciais transitadas em julgado que possuem 60 anos, são portadores de doenças graves ou se enquadram na definição de pessoas portadoras de necessidades especiais deixaram de gozar do benefício da parcela por quase 3 anos, em que apenas aguardavam a iniciativa do Poder Público de efetivar a previsão constitucional.

De outro modo, a tramitação da PEC dos precatórios, que ameaça substancialmente o adimplemento de obrigações por parte da Fazenda Pública, as quais também se originam de lesões carregadas ao longo de anos por servidores públicos, tem se dado de forma célere, com a aprovação, pela Câmara, por 323 votos a 172.

Além das lesões sofridas pelos servidores no decorrer do exercício de suas funções e até mesmo quando estão inativos, esses beneficiários têm de lidar, compulsoriamente, com a mora da tramitação dos processos que buscam reconhecer o direito pleiteado, na fase de conhecimento.

Uma vez reconhecido o direito, os servidores, em sua maioria idosos, têm de lidar com uma segunda fase processual: a fase de execução, na qual a Fazenda Pública goza de toda sorte de vantagens em juízo, seja a previsão de prazos em dobro, sejam as reiteradas oportunidades conferidas ao Ente Público para se manifestar a respeito de aspectos discutidos no processo, seja a utilização de ferramentas processuais construídas pela jurisprudência para casos específicos, como é o caso da exceção de pré-executividade, criada para ser utilizada na execução fiscal.

Após todo esse procedimento a que o servidor público idoso e/ou portador de doença grave se submete, o qual, muitas vezes, leva décadas para ser solucionado, chegada, finalmente, a etapa de expedição de ofício requisitório capaz de satisfazer a sua obrigação, o beneficiário se depara com novas regras que possuem o objetivo de postergar ainda mais o seu recebimento ou, ainda, de diminuir o valor devido e de parcelar o seu crédito.

Por fim, também o art. 3o do texto aprovado merece destaque, pois prevê que, nas condenações envolvendo a Fazenda Pública, independentemente da sua natureza (portanto, os créditos alimentares estão abarcados), para fins de atualização monetária e de compensação de mora, haverá a incidência, até o efetivo pagamento, do índice da taxa referencial da SELIC, o que vai de encontro ao que o STF decidiu em sede do RE n. 870.947 (oportunidade na qual foi fixado o IPCA-E para fins de atualização monetária de créditos não tributários) e do RE n. 1.169.289 (quando a Corte Suprema fixou a não incidência de juros de mora entre a expedição do precatório e o seu efetivo depósito).

Sob o ponto de vista macro orçamentário, a pretendida alteração no regime de precatórios abre margem fiscal, a curto e médio prazo, para que o Governo Federal possua um superávit, a fim de que sejam implementadas as políticas do Auxílio Brasil. Contudo, na prática, a limitação do pagamento anual apenas adiará o pagamento do excedente, sem se constituir, portanto, como uma alternativa capaz de solucionar o problema a partir de suas raízes.

Por outro lado, as alterações pretendidas pelos Poderes Executivo, autor do texto original da PEC, e Legislativo, autor do texto substitutivo, cravejam e amplificam o risco que paira sobre a dívida pública, o que enseja, inclusive, mudanças comportamentais por parte dos agentes econômicos, sempre atentos à credibilidade gozada pelo país em sua política fiscal.

Feitas essas considerações, é necessário aguardar a votação do texto pelo Senado Federal, a fim de que prognósticos mais concretos sejam delineados quanto à situação dos precatórios alimentares, mormente aqueles dos quais são beneficiários os servidores públicos.

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